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"Mas compreendo, num relâmpago, o que até aqui não tinha compreendido: que a sua insegurança, para além da sua beleza, é o o que supremamente me perturba; e que essa mesma insegurança é o que dia para dia a vai tornando mais arrebatadora, como se assim pretendesse compensar-se ou compensar-me, inventando tudo, reinventando tudo, aderindo a tudo, excedendo tudo, sempre que voltamos a ser, em cima desse divã (cada vez, aliás, com maior frequência), uma renovada praia submersa, uma renascida árvore na horizontal.
(...)
Parvoíce, claro. Parvoíce e retórica à mistura. Mas nem a consciência de tais patacoadas conseguia minimamente afectar os gestos de adoração com que eu julgava imprimir definitivo contorno àqueles cabelos, àquelas pálpebras, àquele pescoço, àquelas espáduas. Em torno dos seus pés, o fato de linho, amarrotado e informe, cada vez evocava mais um bloco de mármore - de onde todo o corpo tivesse emergido. Tornava-se quase uma obsessão.
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Pergunto a mim próprio se o seu amigo terá razão: neurótica, a Y? Ou até psicótica? Se assim for, poderei acaso gostar menos dela? Não será também psicótica a própria Beleza? Não será antes psicótico o amor da Beleza? Mas só a Beleza e o amor da Beleza, por mais psicóticos que sejam ou mais fora de moda que pareçam, conseguem afinal empolgar-me e fazer-me pairar acima do mundo.
Na última vez que se tinha aqui encontrado comigo - poucas horas antes, sim, da conversa que viria a travar com a Floripes - a Y subitamente exclamara, no momento em que os nossos corpos mais a compasso avançavam a caminho do êxtase:
«Sente? Não sente? Estamos com a mesma circulação.»
E, pouco depois, ambos de costas, lado a lado, como duas estátuas jacentes. No seu ténue fio de voz voltou a referir aquele instante:
«Não era circulação que eu queria dizer. Não era só a mesma circulação... Era também o mesmo sangue.»"
Excertos de "Um Amor Feliz" de David Mourão Ferreira
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